14 Março 2018
"Hoje, na realidade, Schweitzer é mais atual do que nunca, e com várias correções e adições, uma das fontes mais autorizadas de toda a crítica do Novo Testamento, mesmo na esfera confessional", escreve Carlo Nordio, em artigo publicado por Il Messaggero, 10-03-2018. A tradução é de Ramiro Mincato.
O que se pode ler quando se está cansado de esterilizadas polêmicas pós-eletivas, de áridas estatísticas econômicas, de petulantes litanias pedagógicas? Podemos nos refugiar, a fim de recuperar a respiração, nas regiões nobres do pensamento, onde razão e coração se juntam em síntese laboriosa.
Albert Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz, médico, teólogo e organista é um consolo seguro quando a mediocridade da existência corre o risco de pressionar nossas faculdades e iniciativas.
Ele não pregava um “bonismo” genérico e acomodado, e nem buscou fama e poder ostentando humildade. Quando percebeu a insuficiência de sua teologia, foi ao Gabão e fundou um hospital, conhecido pelo mundo inteiro.
Mas, antes disso, ele nos deixou dois presentes extraordinários: suas performances de Bach e um livro de setecentas páginas que constitui um pilar da cultura cristã: A busca do Jesus histórico.
O livro, publicado em 1906, esmagou as conclusões de 150 anos de estudos. Schweitzer realmente consolidou e desenvolveu a engenhosa ideia de Joannes Weiss sobre a natureza essencialmente escatológica da pregação de Jesus, mas o fez com crítica tão rigorosa, pesquisa tão completa e estilo tão brilhante que fascinou os especialistas - e até mesmo os não-especialistas - da área.
Somente F. David Strauss e Ernest Renan tiveram tanta ressonância. Mas Schweitzer excedeu a ambos, tanto pela extensão da pesquisa como pela intensidade da reflexão. Não foi traduzida para o italiano, porém, por sua heterodoxia revolucionária, ou mais provavelmente pela falta de interesse que essa literatura suscitava na Itália. No imenso catálogo da crítica do Novo Testamento, nossos autores podem ser contados nos dedos de uma só mão.
Schweitzer parte de Hermann Reimarus que escreveu sete fragmentos, para um total de 4000 páginas, prudentemente guardados, e somente publicados postumamente por Lessing, entre 1774 e 1778: foi a primeira tentativa de distinguir a pregação autêntica de Jesus daquela reformulada pelos apóstolos.
Este insidioso fluxo subterrâneo tornou-se logo um rio transbordante e, em seguida, um mar agitado.
Frederich D. Strauss sustentava a teoria de um Jesus mitologizado; Paulus procurava interpretar os milagres como fenômenos naturais; Bauer afirmava que ele nunca tinha existido. São alguns exemplos dos vários autores representantes da variedade de orientações: racionalista, romântica, cética negacionista, liberal.
Schweitzer os recolheu e comentou todos eles, para chegar à conclusão que alarmou o mundo dos teólogos: "Estranho destino este da pesquisa sobre a vida de Jesus. Partiu para encontrar o Jesus histórico, pensando poder trazê-lo para tempos atuais, quebrou as correntes que há séculos o mantinham atado às rochas da doutrina eclesiástica, e alegrou-se quando viu o homem Jesus vindo ao seu encontro. Ele, no entanto, não parou, passou diante do nosso tempo e voltou para o seu. O fundamento histórico do cristianismo, apresentado pela teologia racionalista, liberal e moderna, já não existe".
O que aconteceu de Reimarus em diante? Aconteceu que - libertos da ortodoxia confessional - os críticos construíram um retrato de Jesus para seu próprio uso e consumo, adaptando-o ao espírito moderno, na esperança ilusória de encontrar "algum compromisso entre Sua visão do mundo e a nossa". Surgiu um Galileu educado e indulgente, portador de universal magistério de tolerância e benevolente fraternidade.
Uma espécie de bom pai de uma família, substituiu a inviolável invocação dos antigos profetas com oferta de amizade, favorecida, como reivindicada poeticamente por Renan, pela doçura do clima de Tiberíades. Um pouco como os deístas inglese tinham arbitrariamente deposto Yahweh para substituí-lo por um Grande Arquiteto distante e cortês: uma ideia recorrente, uma vez que também hoje, o Pai Eterno, despojado de toda transcendência, é considerado uma Entidade genérica, équa e solidária.
Schweitzer fez uma varredura dessas amabilidades. Jesus foi levado de volta ao Seu tempo e ao Seu papel, como um vigoroso profeta apocalíptico que anunciou o iminente advento do reino de Deus. Sua pregação é essencialmente escatológica, no sentido de que é funcional para o mundo novo que está prestes a se afirmar, e que requer adesão incondicional e definitiva. Sua ética não é projetada para o futuro, porque não haverá futuro, no sentido de que a catástrofe acontecerá em breve, no espaço de Sua geração: é, portanto, uma ética interina, provisória, necessária e suficiente para preparar os corações daqueles chamados a participar da banquete régio. Neste sentido, e somente neste, o reino de Deus já está dentro de nós. Mas esta não é uma situação psicológica de tranquilidade reconfortante. É antes uma preparação essencial para o advento da nova era. O fulcro da mensagem cristológica está na famosa proclamação aos apóstolos - em Mt 10,23 - "na verdade, eu vos digo que não terminareis (de visitar) as cidades de Israel antes que o Filho do Homem venha". Do que procede a advertência (16,28): "Alguns dos que aqui se encontram não provarão a morte antes de terem visto o Filho do homem vir em seu reino".
E então, o que fazer, se passada aquela geração e transcorridos vinte séculos, o Reino ainda não chegou?
Podemos considerar Jesus um ingênuo iludido e desapontado, refugiarmo-nos, como fizeram os teólogos "liberais", em um vago solidarismo adaptado aos tempos modernos? Não, diz Schweitzer, porque "Sua poderosa esperança e a forte vontade do reino de Deus zombam das coisas como as vemos, libertam-nos das condições presentes, e a fé, na força invencível do espírito ético, nos dá sustento, liberdade e paz".
Raramente nossos santos chegaram a tais picos de religiosa e racional poesia. Durante muito tempo, o mundo dos teólogos ficou petrificado diante dessas conclusões categóricas. Depois, obediente à lei da oposição dialética, retomou seu vigor e confrontou-se com esta tese da "escatologia consequente". Loisy reconheceu a inspiração apocalíptica de Jesus, mas apenas para reduzi-la a um agitador profético aniquilado pelo poder romano. Dibelius e Bultmann procuraram, por trás do mito criado pela pregação apostólica, seu profundo e remoto significado moral. Alguns retomaram a antiga tese liberal, e outros reavivaram a teoria da não existência histórica de Jesus: estupidez, respondeu o célebre Guignebert, que nem sequer merece ser discutida.
A discussão, é claro, continua. Hoje, na realidade, Schweitzer é mais atual do que nunca, e com várias correções e adições, uma das fontes mais autorizadas de toda a crítica do Novo Testamento, mesmo na esfera confessional. E não é coincidência que este livro tenha sido publicado por uma editora, La Paideia, especializada em pesquisa e comentários bíblicos. Pode ser lido e amado, sem prejuízo da própria fé, mesmo pelo cristão mais devoto.
Mas, isto, Albert Schweitzer não o sabe, e, se o souber, o sabe naquela forma por nós desconhecida, pregada por Jesus. O grande médico teólogo, faleceu em 1965, depois de passar a maior parte dos últimos cinquenta anos curando crianças em Lambaréné, na África Equatorial, confortado pela gratidão dos padecentes e pela música de Bach, que tocava, à noite, no órgão, Ad maiorem Dei gloriam.
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O Cristo de Schweitzer. A força da esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU